O QUADRILÁTERO ABSTEMIOLÓGICO sinaliza que todos abstêmios têm em comum certos critérios éticos, cronológicos, racionais e espirituais (é o MÍNIMO ABSTEMIOLÓGICO). Continuando a sequência de 04 (quatro) estudos sobre o QUADRILÁTERO ABSTEMIOLÓGICO, nessa quarta postagem sobre os critérios, analisaremos o CRITÉRIO ESPIRITUAL. Afinal de contas, no que consiste essa espiritualidade?
É, absolutamente, inegável o benefício que o sistema ideológico religioso traz aos abstêmios. Inúmeros abstêmios estão intimamente ligados a alguma forma de religiosidade e baseiam sua evolução abstemiológica e o sobrepujamento da adicção através da obediência aos princípios religiosos. Existem muitos exemplos de sistemas ideológicos religiosos capazes de anularem os conceitos equivocadamente adquiridos pelo sistema ideológico adicto, por exemplo, Igreja Evangélica, Igreja Batista, Igreja Católica, Religião Umbandista, Religião Espírita, Adeptos do Santo Daime, entre diversos outros. Em regra, todos os sistemas ideológicos religiosos são contrapontos aos sistemas de adicção. Isso ocorre porque aqueles que se dedicam ao sistema religioso afastam-se, paulatinamente, das pessoas, hábitos e lugares da ativa[1]. Sem dúvida, a inserção de conceitos religiosos é capaz de afastar a pessoa da adicção e, consequentemente, aproximá-la da abstinência e de uma vida sem consumo de drogas/álcool.
Entretanto, como sinalizam diversos pastores, bispos, padres e ecumênicos, é necessário ter muita atenção: ESPIRITUALIDADE NÃO É RELIGIÃO. A espiritualidade que deve estar presente nos abstêmios, de modo geral, não se confunde com mera religiosidade ou conceitos de fé cerimoniais. Podemos mencionar uma metáfora bastante elucidativa sobre esse assunto:
“Numa cidade pequena no interior do Brasil não choveu durante um ano inteiro. A população procurou um religioso que atuava na cidade e pediu para que ele fizesse uma oração pedindo a tão esperada chuva. Todos disseram que se o religioso orasse a chuva deveria vir. O religioso, então, disse que iria fazer uma cerimônia em praça pública no domingo, mas que só iria orar, pedindo chuva, se alguém na cidade lhe provasse que tinha fé em Deus. Alguns dias antes da cerimônia apareceram pessoas carregando cruz nas costas, várias outras espalharam milho pelo chão e se ajoelharam rezando sobre ele, alguns crentes andaram de joelhos em volta da igreja por vários dias e outros fizeram jejum. Quando chegou o dia de domingo, o religioso foi até a praça, andou entre todos que estavam lá, olhou firmemente para cada pessoa presente e disse a todos: ‘não vou rezar porque ninguém aqui tem fé’. A população ficou indignada e pediu para que o religioso se explicasse melhor, já que haviam feito tanto sacrifício até aquele momento e esperavam ansiosamente pela chuva. Então o religioso disse: ‘se eu orar com vocês, vai chover?’ A população respondeu: ‘sim’. O religioso retrucou: ‘e, se chover, vai cair pouca água do céu ou muita?’ A população respondeu: ‘muita’. Por fim, o religioso falou: ‘então me respondam, qual de vocês trouxe o guarda-chuva?’”
Essa metáfora é muito autoexplicativa e útil para se distinguir entre religiosidade e espiritualidade. A MERA RELIGIOSIDADE, POR VEZES, ENCOBRE A REAL FALTA DE FÉ[2]. A religiosidade em si mesma não representa fé. É comum encontrarmos padres, pastores, bispos ou ecumênicos que enfatizam a seus fiéis que o simples fato de comparecerem às missas, cultos ou encontros religiosos NÃO é suficiente para demonstrarem a fé. É preciso muito mais. Já sabemos há muito tempo que “a fé sem obras é morta”[3].
Então, o que é espiritualidade para o abstêmio? É a boa vontade[4] e a serenidade. O critério espiritual é OUTPUT, 12° (décimo segundo) passo dos grupos anônimos, 13º passo da abstemiologia, cosmoeticidade, assistência, insight, exemplo, persistência, “Um dia de cada vez ou SÓ POR HOJE”. Exemplos de espiritualidade também podem ser “as partilhas”, já que tais partilhas não são palavras lançadas ao vento. As partilhas mudam destinos, iluminam cabeças, ajudam na lucidez e mostram que a possibilidade de permanecer em abstinência e a vida saudável são metas alcançáveis. Partilha é uma forma de assistencialidade prestada pelos abstêmios aos outros colegas ou aos seus familiares.
Certa feita, em reunião de grupo de abstinência, um dos membros disse: “uma experiência espiritual é aquilo que Deus[5] faz por uma pessoa quando ela está totalmente incapaz de fazer por si mesma”. Essa é uma boa maneira de entender o significado de “espiritual" para os abstêmios. Em outra toada, uma abstêmia definiu espiritualidade afirmando: “espiritualidade é tentar fazer a coisa certa, no momento certo”[6]. Só isso.
Em suma, espiritualidade na abstinência não se dirige, necessariamente, a nenhum conceito religioso preexistente. Cada um deve conceber a espiritualidade da sua própria maneira, seja meditando, rezando ou prestando assistência a quem aceitar e precisar. Você até pode ser descrente e, mesmo assim, permanecer abstêmio se for muito sincero “consigo mesmo”. O próprio conceito de espiritualidade serve para afastar a indução – ou autoindução – de culpa. Aqui, vale a máxima: “quem quer te induzir culpa quer te dominar”[7].
Em apertada síntese, o critério da ESPIRITUALIDADE serve para: incentivar o abstêmio a reparar seus erros praticados durante o processo de adicção, prestar assistência aos colegas mais inexperientes, servir como exemplo a ser seguido por outros abstêmios (exemplarismo), manter a integridade do critério ético, amenizar o senso de autoimportância, descentralizar seu próprio ego, diminuir o narcisismo, aprender com os erros, vigiar sua evolução abstemiológica para evitar desvios abstêmios, entre outros.
Bons estudos!
Escritor: Péricles Ziemmermann
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REFERÊNCIAS
[1] Aliás, a TÉCNICA DO EVITE E DO PROCURE sinaliza que o abstêmio deve evitar pessoas, hábitos e lugares da ativa e, simultaneamente, aproximar-se de pessoas, hábitos e lugares abstemiologicamente saudáveis.
[2] PINTO, Ênio Brito. ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE: ARTICULAÇÕES. Revista de Estudos da Religião: dezembro 2009, pp. 68-83, ISSN 1677-1222.
[3] Bíblia Sagrada: São Tiago (2:26).
[4] Destaque-se a existência de 03 (três) níveis de boa vontade: pré-vontade, autovontade e supravontade.
[5] Em grupos anônimos a palavra “Deus” é, em regra, substituída por “Poder Superior”. Essa feliz expressão tem a intenção de englobar quase todas as formas de religiões que existem a fim de evitar discussões teológicas desnecessárias.
[6] A frase foi ligeiramente alterada de modo que, com isso, podemos evitar a declarar a autoria e, consequentemente, preservar o anonimato da colega abstêmia. Agradecemos a lucidez da colega e a parabenizamos pelos diversos anos de abstinência que possui.
[7] Sugerimos, humildemente, que seja feita a leitura do texto: EFEITO ABSTÊMIO DA RECUPERAÇÃO DA QUÁDRUPLA CAPACIDADE
ZIEMMERMANN, Péricles. PRINCÍPIOS ABSTEMIOLÓGICOS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2019. ISBN 978-85-824565-3-8
ZIEMMERMANN, Péricles. TEORIAS ABSTEMIOLÓGICAS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2019. ISBN 978-85-824566-2-0
ZIEMMERMANN, Péricles. ITINERÁRIOS ABSTEMIOLÓGICOS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2019. ISBN 978-85-924432-3-8
ZIEMMERMANN, Péricles. ABSTEMIOPATIAS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2021. ISBN 978-85-824583-6-5
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